Secretário de Estado não tem prerrogativa de foro em crimes federais

Secretário de Estado não tem prerrogativa de foro em crimes federais

A Constituição Federal de 1988, em diversos dispositivos normativos que tratam da competência originária dos órgãos do Poder Judiciário, prevê o chamado foro por prerrogativa de função. Segundo apontamentos de Tourinho Filho[1], “há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado, e, em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria, gozam elas de foro especial, isto é, não serão processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos superiores, de instância mais elevada”.

Assim, a título exemplificativo, ao definir o âmbito de atuação do Supremo Tribunal Federal, o constituinte originário previu que a ele caberá julgar, “nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica”[2]; o Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem competência para, nos crimes comuns, processar e julgar “os Governadores dos Estados e do Distrito Federal (…), os desembargadores dos Tribunais de Justiça (…), os membros dos Tribunais de Contas dos Estados (…)”[3], entre outros[4].

Não se pode ignorar que também as Constituições Estaduais podem trazer previsões que definam casos específicos de foro por prerrogativa de função[5]. Vale mencionar, nesse contexto, que a Constituição do Estado de São Paulo, tal como acontece na maior parte dos outros estados da federação, estatui que “compete ao Tribunal de Justiça (…) processar e julgar originariamente:

I – nas infrações penais comuns, o Vice-Governador, os Secretários de Estado, os Deputados Estaduais, o Procurador-Geral de Justiça, o Procurador-Geral do Estado, o Defensor Público Geral e os Prefeitos Municipais;

II – nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os juízes dos Tribunais de Alçada e do Tribunal de Justiça Militar, os juízes de Direito e os juízes auditores da Justiça Militar, os membros do Ministério Público, exceto o Procurador-Geral de Justiça, o Delegado Geral da Polícia Civil e o Comandante-Geral da Polícia Militar.

Relevante mencionar, consoante ensinamentos de Mendes, que “a prerrogativa de foro não se confunde com privilégio”. Isso porque, “é justamente a peculiar posição dos agentes políticos que justifica o tratamento constitucional diferenciado em relação aos demais agentes públicos (…). Por esse motivo, a prerrogativa funcional é instituída tendo em vista o interesse público do regular exercício do cargo[6]”.

Nos últimos meses, o grande número de procedimentos criminais em curso no Brasil, aliado à forma como eles têm sido conduzidos pelos entes encarregados da persecução penal, os quais têm se valido, com enorme frequência, do instituto da prisão preventiva, fez com que determinados imputados, inscientes de que as previsões normativas sobre o foro por prerrogativa de função não são forjadas para assegurar privilégios, buscassem nomeações para cargos elevados da Administração Pública, federal e estadual, com o fim de receber tratamento jurisdicional especial.

Dentre as situações concretas verificadas, do ponto de vista técnico-jurídico, uma delas merece detida análise: a nomeação, por um Governador de Estado, para o cargo de Secretário, de pessoa investigada pela prática de crimes de competência da Justiça Federal. A partir da publicação do ato administrativo da nomeação, haveria de se imaginar que ocorreria a modificação do ente jurisdicional competente para a apreciação do procedimento investigatório. Afinal, a Constituição do Estado onde tal fato aconteceu prevê que, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, o Secretário será processado e julgado pelo Tribunal de Justiça, não pelos juízes de Primeiro Grau.

Entretanto, apesar de, segundo consta de reportagens jornalísticas publicadas, a nomeação ter sido feita pelo Governador com o propósito de alterar a competência para o julgamento das condutas ilícitas atribuídas ao novo Secretário de Estado, não nos parece que tal nomeação, viciada ou não em sua finalidade, deveria trazer os resultados supostamente pretendidos por seus interessados, considerados os lindes fixados na ordem jurídica brasileira sobre a temática.

É importante mencionar, inicialmente, que a Constituição Federal de 1988, de forma expressa, no artigo 109, previu que compete à Justiça Federal a investigação dos “crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresa públicas (…)”, “os crimes previstos em tratado ou convenção internacional (…)”, “os crimes contra a organização do trabalho, nos casos determinador por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira”, “os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves” e “os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro” no país.

E, de acordo com as informações veiculadas acerca do conteúdo das investigações que recaem sobre o referido indivíduo indicado para ocupar o cargo de Secretário de Estado, em seu bojo estariam “infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União”, de competência da Justiça Federal.

Nesse cenário, embora a Constituição Estadual, conforme antes verificado, institua foro por prerrogativa de função ao Secretário de Estado, por evidente, seus preceitos normativos não podem contrariar as regras de definição da competência previstas no artigo 109 da Carta da República. Assim, inviável que se desloque, para o Tribunal de Justiça, a competência para o julgamento da prática de crimes federais. Afinal, não se há de admitir que, no âmbito dos Estados, sejam criadas regras de competência que prevaleçam sobre aquelas erigidas pelo constituinte originário.

Desse modo, como primeira conclusão, é possível dizer que, ainda que as Constituições Estaduais, em geral, e a Constituição do Estado em que o fato aconteceu, em especial, prevejam o julgamento de Secretários de Estado pelo Tribunal de Justiça, tal previsão não se estende aos casos em que estejam sendo apurados crimes que a Constituição Federal determina sejam processados e julgados pela Justiça Federal.

Importante mencionar, nesse panorama, que o Supremo Tribunal Federal, ao tratar da definição da competência para a apuração de crimes federais de responsabilidade de prefeitos municipais, editou o provimento sumular 702, segundo o qual “a competência do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da Justiça Comum Estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo Tribunal de Segundo Grau”, circunstância que exclui qualquer dúvida quanto ao fato de que o Tribunal de Justiça não poderia julgar Secretário de Estado investigado pela prática de crime federal.

Ademais, considerada a premissa de que a Constituição Estadual não pode alterar os parâmetros de definição de competência material insculpidos na Constituição Federal, retirando da Justiça Federal a competência para julgar infrações penais lesivas a interesses da União, cumpre verificar se a previsão de foro por prerrogativa de função, em norma estadual, tem o condão de ampliar os casos de competência originária dos Tribunais Regionais Federais, para neles abarcar os Secretários de Estado investigados pela prática dos crimes elencados no artigo 109 da Carta da República.

É necessário, no ponto, mencionar que o texto constitucional, de forma expressa, no artigo 29, inciso X[7], assegura aos prefeitos municipais o julgamento perante o “Tribunal de Justiça”. Tal dispositivo, em cotejo com os dispositivos normativos que especificam o âmbito de competência da Justiça Federal, permite concluir, na linha que consta do édito sumular antes referido, que, nos casos de apuração de crime federal, caberá aos Tribunais Regionais Federais, originariamente, julgar os prefeitos.

Destaque-se que, no que concerne a esses agentes políticos, a própria Constituição Federal traz indicação de que eles devem ser processados e julgados por Tribunais de Segundo Grau. E, portanto, a necessidade de assegurar foro por prerrogativa de função aos prefeitos, também quando investigados pelo envolvimento em crimes federais, não advém de normas estaduais, mas da própria Lei Maior.

A situação, contudo, é muito diversa, quando está em análise a situação jurídico-processual dos Secretários de Estado. Com efeito, nenhum dispositivo constitucional trata da necessidade de se lhes assegurar foro por prerrogativa de função: a disciplina dessa matéria é integralmente feita no bojo das Constituições Estaduais. Assim, cumpre responder ao seguinte questionamento: é possível que, em razão de previsão existente em norma estadual, seja acrescida hipótese de competência originária dos Tribunais Regionais Federais, não delineada na Constituição Federal?

Em nossa concepção, por óbvio, a resposta há de ser negativa. Afinal, os casos de competência originária dos Tribunais Regionais Federais estão previstos, de forma clara, no artigo 108 da Constituição Federal[8], e inexiste qualquer ressalva que autorize supor que outras situações poderiam ser nele inseridas. Repise-se que, com relação ao julgamento dos prefeitos, a própria Carta Magna indicou a necessidade de que gozassem de foro por prerrogativa de função, o que justifica, nas investigações de crimes federais, sejam eles julgados pelos Tribunais de Segundo Grau da Justiça Federal.

Entretanto, tal situação não pode ser estendida para os ocupantes de cargos de Secretário de Estado, que, portanto, não gozam de foro por prerrogativa de função na apuração de crimes federais, de competência da Justiça Federal de Primeiro Grau.

Afinal, (i) a Carta da República prevê que compete à Justiça Federal o julgamento dos crimes apurados no caso concreto referido no texto, e dispositivos da Constituição Estadual não podem alterar essa determinação constitucional; (ii) inexiste qualquer preceito normativo que permita ampliar, para além dos casos previstos no artigo 108 da Carta Magna, o âmbito de competência dos Tribunais Regionais Federais; e, por fim, (iii)tendo em vista que as normas que asseguram, para alguns agentes públicos, foro por prerrogativa de função, tratam de situações excepcionais, sua interpretação deve ser restritiva, não extensiva, como se exigiria para que os Secretários de Estado, investigados por crime federal, fossem julgados em Segundo Grau.


1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 2. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 135.

2 Constituição Federal, artigo 102, inciso I, alínea c.

3 Constituição Federal, artigo 105, inciso I, alínea a.

4 Importante destacar, nesse panorama, que também foi assegurado o foro por prerrogativa de função, na Constituição Federal, aos juízes federais e aos Membros do Ministério Público da União, julgados pelos Tribunais Regionais Federais, aos Prefeitos Municipais etc.

5 Essa possibilidade está assegurada pelo artigo 125, §1º da Constituição Federal, do qual se extrai que “a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado”.

6 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

7 Artigo 29 da Constituição Federal: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (…) X – julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça”.

8 Artigo 108 da Constituição Federal: “Compete aos Tribunais Regionais Federais: I – processas e julgar, originariamente: a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região; c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal; e) os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal”.

*Artigo alterado às 10h28 do dia 14/6 para correções.

 é sócio do Corrêa Gontijo Sociedade de Advogados, doutorando e mestre pela USP, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela FGV e pela Universidad Castilla-la-Mancha.

Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2016, 9h37